Quando voltei, meu advogado
estava na banheira. Submerso em água verde – o subproduto gorduroso de sais de
banho japoneses comprados na loja de presentes do hotel. Ao lado da banheira,
um rádio AM/FM novinho, ligado na tomada do barbeador elétrico. Volume máximo. Era
uma bobagem de uns sujeitos chamados “Three Dog Night”, falando sobre um sapo
chamado Jeremiah que “deseja alegria ao mundo”.
Primeiro Lennon, agora isso,
pensei. Daqui a pouco Glenn Campbell vai aparecer gritando: “Onde estão todas
as flores?”.
Onde, realmente? Esta cidade não
tem flores. Apenas plantas carnívoras. Baixei o volume e notei um pedaço roído
de papel ao lado do rádio. Meu advogado não pareceu notar a mudança no volume.
Estava perdido numa névoa de vapor esverdeado; só metade de sua cabeça estava
fora d’água.
“Você mastigou isso aqui?”,
perguntei, mostrando a folha.
Ele me ignorou. Mas eu sabia.
Pelas seis horas seguintes, seria muito difícil entrar em contato com ele. Ele
tinha mastigado a folha de ácido inteira.
“Seu escroto”, xinguei. “Espero,
pro seu bem, que tenha sobrado algum Thorazine naquela sacola. Caso contrário,
amanhã você estará em sérios apuros.”
“Música!”, ele rosnou. “Aumenta.
Coloca aquela fita.”
“Que fita?”
“A nova. Tá bem ali.”
Peguei o rádio e percebi que era
também um gravador – daqueles com toca-fitas embutido. E a fita, Surrealistic Pillow, só precisava ser
virada. Ele já tinha escutado o lado A inteiro – num volume que podia ser
ouvido em todos os quartos num raio de cem metros, atravessando as paredes.
“White Rabbit”, ele pediu. “Quero
um som crescente.”
“Você tá fodido”, ameacei. “Vou
embora daqui a duas horas – e aí eles vão subir até aqui pra espancar você até
a morte. Dentro da banheira.”
“Eu cavo minhas próprias
sepulturas”, respondeu. “Água verde e ‘White Rabbit’... coloca a fita; não me
force a usar isso aqui.” Seu braço emergiu da água, mostrando a faca de caça.
“Jesus”, murmurei. E nesse
momento percebi que não havia como discutir com ele – deitado na banheira,
cheio de ácido na cabeça, empunhando a faca mais afiada que eu já tinha visto,
totalmente incapaz de raciocinar, exigindo ouvir “White Rabbit”. É isso,
pensei. Cheguei ao meu limite com esse retardado. Dessa vez é uma viagem
suicida. Dessa vez ele está pedindo. Está prontinho...
“Certo”, falei, virando a fita e
apertando o play. “Mas peço um último favor. Pode me dar duas horas? É tudo que
peço – quero dormir duas horas até amanhã. Acho que vai ser um dia bem
complicado.”
“É claro”, ele respondeu. “Sou
seu advogado. Dou todo tempo que você
quiser, cobrando meus honorários normais: 45 dólares por hora – mas, como você
vai usar os travesseiros, por que não deixa uma nota de cem dólares ao lado do
rádio e cai fora daqui?”
“Aceita cheque?”, perguntei. “É
do Banco Nacional de Sawtooth. Pode descontar sem levar documento. Eles me
conhecem”.
“Pode ser”, falou, começando a se
sacudir com a música. O banheiro parecia o interior de um woofer imenso e
defeituoso. Vibrações tenebrosas, volume ensurdecedor. Piso encharcado.
Coloquei o rádio o mais longe possível da banheira, saí e fechei a porta.
Em poucos segundos ele começou a
gritar. “Socorro! Seu filho da puta! Preciso de ajuda!”
Corri até lá, imaginando que ele
tinha decepado a própria orelha por acidente.
Mas não... estava no chão do
banheiro, com os braços estendidos na direção da prateleira de fórmica branca
onde eu tinha colocado o rádio. “Quero esse rádio, porra”, rosnou.
Afastei suas mãos com um tapa. “Seu
imbecil”, gritei. “Volta já pra banheira! Fica longe desse rádio, porra!” Dei
outro tapa em seus braços estendidos. O volume estava tão alto que era difícil
entender o que estava tocando, a menos que você soubesse de cor todas as notas
de Surrealistic Pillow... na época eu
sabia, e notei que “White Rabbit” havia acabado; o clímax tinha chegado e
passado.
Mas não parecia ter sido o
bastante para meu advogado. Ele queria mais. “Rebobina essa fita!”, gritou. “Quero
tudo de novo!” Seus olhos estavam enlouquecidos, incapazes de se fixar em
alguma coisa. Ele parecia à beira de um orgasmo psíquico inominável...
“Manda ver!”, berrou. “Bota o
mais alto que der, caralho! E quando chegar aquela parte incrível em que o
coelho decepa a própria cabeça, quero que você atire essa merda de rádio em
cima de mim, dentro da banheira.”
Olhei bem pra ele, sem tirar as
mãos do rádio. “De jeito nenhum”, falei após uma pausa. “Eu adoraria meter um
ferrão elétrico de 440 volts nessa banheira com você dentro, mas não esse rádio. Você vai explodir e
atravessar a parede – estará mortinho em dez segundos”. Dei risada. “Porra, eu
teria que explicar o que aconteceu –
aguentar um inquérito entediante cheio de perguntas... sim... pediriam os detalhes exatos. Não preciso disso.”
“Porra nenhuma!”, ele gritou. “Só
precisa falar que eu quis ficar mais
alucinado!”
Pensei por um instante. “Certo.
Tem razão. Deve ser mesmo a única saída.” Peguei o rádiogravador – ainda ligado
na tomada – e o segurei sobre a banheira. “Quero ter certeza de que está bem
alinhado”, expliquei. “Você quer que eu atire esse negócio na banheira no
clímax no clímax de ‘White Rabbit’ – é isso mesmo?”
Meu advogado voltou para a água e
abriu um sorriso cheio de gratidão. “É isso aí, porra”, confirmou. “Tava
começando a achar que seria obrigado a sair daqui e convencer uma das camareiras a fazer isso por mim.”
“Não se preocupe”, falei. “Está
pronto?” Apertei o play e “White Rabbit” voltou a tocar. Quase na mesma hora
ele começou a uivar e gemer... correndo montanha acima, imaginando que daquela
vez enfim chegaria ao topo. Seus olhos estavam bem fechados. Apenas sua cabeça
e seus joelhos despontavam da água verde e gordurosa.
Deixei a música tocando e remexi
a pilha de toranjas maduras ao lado da pia. A maior delas pesava quase um
quilo. Segurei aquela merda como se fosse uma enorme bola de beisebol – e quando
“White Rabbit” chegou ao seu clímax joguei aquilo na banheira como uma bala de
canhão.
Meu advogado começou a berrar
enlouquecido, se revirando na banheira como um tubarão faminto, derramando água
por todo o piso enquanto tentava agarrar alguma coisa.
Arranquei o radiogravador da
tomada e tirei a coisa do banheiro rapidinho... continuava tocando, mas agora
usava a energia inofensiva das pilhas. Ouvi as coisas se acalmarem enquanto eu
cruzava o quarto para pegar meu spray de pimenta... até que meu advogado
arrombou a porta do banheiro e saiu correndo. Ainda estava com um olhar
perdido, mas sacudia a faca à sua frente como se estivesse determinado a fazer
picadinho de alguma coisa.
“Pimenta!”, gritei. “Quer isso aqui?” Sacudi o spray bem na frente
daqueles olhos turvos.
Ele parou na hora. “Filho da
puta!”, gritou. “Você faria isso, não
é?”
Dei risada, ainda sacudindo o
spray. “Ora, não se preocupe. Você vai gostar.
Porra, nada nesse mundo se compara a um barato de spray de pimenta – são 45
minutos de joelhos no chão, com ânsia de vômito e falta de ar. Você vai ficar
bem calminho.”
Ele virou a cabeça na minha
direção, tentando me enxergar direito. “Seu branquelo de merda, seu escroto
filho duma puta”, resmungou. “Você faria
isso, né?”
“E por que não?”, provoquei. “Porra,
um minuto atrás você estava pedindo que eu matasse
você! E agora você quer me matar! Puta merda, eu devia era chamar a polícia!”
Ele titubeou. “Polícia?”
Sacudi a cabeça. “É, não tenho
escolha. Não posso me arriscar a pegar no sono com você solto por aí nesse
estado – cheio de ácido na cabeça e querendo me fatiar com essa faca.”
Meu advogado revirou os olhos por
um instante e tentou sorrir. “Quem falou em fatiar você?”, balbuciou. “Eu só
queria desenhar um Z na sua testa – nada de mais.” Encolheu os ombros e pegou
um cigarro do maço que estava em cima do televisor.
Voltei a ameaçá-lo com o spray. “Volta
pra banheira”, mandei. “Toma umas vermelhas, tenta se acalmar. Fuma um pouco de
maconha, injeta heroína – porra, faz qualquer
coisa, mas me deixa descansar um pouco.”
Ele sorriu, como se eu tivesse
dado sugestões perfeitamente razoáveis. “É mesmo, caralho”, falou, com ar
sincero. “Você tem mesmo que
descansar. Precisa trabalhar amanhã.”
Sacudiu a cabeça com um ar triste e se virou na direção do banheiro. “Porra!
Que sacanagem.” Acenou para se despedir. “Tenta descansar”, falou. “Não deixa
eu atrapalhar”.
Balancei a cabeça e acompanhei
seu lento trajeto de volta ao banheiro – ainda segurava a faca, mas parecia ter
se esquecido dela. O ácido tinha trocado de marcha. A fase seguinte
provavelmente seria um daqueles pesadelos introspectivos terrivelmente
intensos. Umas quatro horas de desespero catatônico; mas nada físico, nada
perigoso. Quando a porta do banheiro se fechou travei a maçaneta usando uma
cadeira pesada e coloquei o spray de pimenta ao lado do despertador.
O quarto ficou muito silencioso. Caminhei
até o televisor e sintonizei um canal fora do ar – ruído neutro com o máximo de
decibéis, uma ótima trilha para dormir, um chiado poderoso e contínuo para
abafar qualquer esquisitice.
THOMPSON, Hunter S. Medo e Delírio em Las Vegas. Tradução: Daniel Pellizzari. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010. pp. 66-71 (vale dizer: publicado originalmente em artigos na revista Rolling Stone durante o ano de 1971)
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