INSÔNIA
Graciliano Ramos
Sim ou
não? Esta pergunta surgiu-me de chofre no sono profundo e acordou-me. A
inércia findou num instante, o corpo morto levantou-se rápido, como se
fosse impelido por um maquinismo.
Sim
ou não? Para bem dizer não era pergunta, voz interior ou fantasmagoria
de sonho: era uma espécie de mão poderosa que me agarrava os cabelos e
me levantava do colchão, brutalmente, me sentava na cama, arrepiado e
aturdido. Nunca ninguém despertou de semelhante maneira. Uma garra
segurando-me os cabelos, puxando-me para cima, forçando-me a erguer o
espinhaço, e a voz soprava aos meus ouvidos, gritada aos meus ouvidos: –
“Sim ou não?”.
Nada
sei: estou atordoado e preciso continuar a dormir, não pensar, não
desejar, matéria fria e impotente. Bicho inferior, planta ou pedra, num
colchão. De repente a modorra cessou e a interrogação absurda me entrou
nos ouvidos – “Sim ou não?” Encostar de novo a cabeça ao travesseiro e
continuar a dormir, dormir sempre. Mas o desgraçado corpo está erguido e
não tolera a posição horizontal. Poderei dormir sentado?
Um,
dois, um, dois. Certamente são as pancadas de um pêndulo inexistente.
Um, dois, um, dois. Ouvindo isto, acabarei dormindo sentado. E
escorregarei no colchão, mergulharei a cabeça no travesseiro, como um
bruto, levantar-me-ei tranquilo com os rumores da rua, os pregões dos
vendedores, que nunca escuto.
Um,
dois, um, dois. Não consigo estirar-me na cama, embrutecer-me
novamente: impossível a adaptação aos lençóis e às coisas moles que
enchem o colchão e os travesseiros. Certamente aquilo foi alucinação,
esforço-me por acreditar que uma alucinação me agarrou os cabelos e me
conservou deste modo, inteiriçado, os olhos muito abertos, cheio de
pavores. Que pavores? Porque tremo, tento sustentar-me em coisas
passadas, frágeis, teias de aranha.
Sim
ou não? Estarei completamente doido ou oscilarei ainda entre a razão e a
loucura? Estou bem, é claro. Tudo em redor se conserva em ordem: a cama
larga não aumentou nem diminuiu, as paredes sumiram-se depois que
apertei o botão do comutador, a faixa de luz que varre o quarto é comum,
igual à que ontem me feriu os olhos e me despertou subitamente.
Porque
fui imaginar que este jacto de luz é diferente dos outros e funesto?
Caí na cama e rolei fora daqui nem sei que tempo, longe, muito longe,
gastando-me no espaço. Partículas minhas boiaram à toa entre os mundos.
De repente uma janela se abriu na casa vizinha, um jorro de luz
atravessou-me a vidraça, entrou-me em casa e interrompeu a ausência
prolongada.
Sim
ou não? Quem me está fazendo na sombra esta horrível pergunta? Com a
golfada de luz que penetrou a vidraça, alguém chegou, pegou-me os
cabelos, levantou-me do colchão, gritou-me as palavras sem sentido e
escondeu-se num canto. Arregalo os olhos, tento convencer-me de que a
luz é ordinária, emanação de um foco ordinário aqui da casa próxima. Se
alguém tivesse torcido uma lâmpada para a esquerda ou tocado um botão na
parede, eu teria continuado a rolar na imensidão, fora da terra. Mas
isto não se deu – e réstia que me divide o quarto muda-se em pessoa.
Quem
está aqui? Será um ladrão? Aventura inútil, trabalho perdido. Não
possuo nada que se possa roubar. Se um ladrão passou pelos vidros,
procurá-lo-ei tateando, encontrá-lo-ei num canto de parede e direi
baixinho, para não amedrontá-lo: – “Não te posso dar nada, meu filho.
Volta para o lugar donde vieste, atravessa novamente os vidros. E
deixa-me aí qualquer coisa.” Não, nenhum ladrão se engana comigo.
Contudo alguém me entrou em casa, está perto de mim, repetindo as
palavras que me endoidecem: – “Sim ou não?”
Sim,
não, sim, não. Um relógio tenta chamar-me à realidade. Que tempo dormi?
Esperarei até que o relógio bata de novo e me diga que vivi mais meia
hora, dentro deste horrível jacto de luz.
Um,
dois, um, dois. Tudo isto é ilusão. Ouvi uma pancada dentro da noite,
mas não sei se o relógio está longe ou perto: o tique-taque dele é muito
próximo e muito distante.
Sim
ou não? Deverei levantar-me, andar, convencer-me de que saí daquele
sono de morte e posso mexer-me como um vivente qualquer, ir, vir, chegar
à janela e receber o ar da madrugada? Impossível mover-me. Para
alcançar a janela preciso atravessar esta claridade que me fende o
quarto como uma cunha, rasga a escuridão, fria, dura, crua. Se a
escuridão fosse completa, eu conseguiria encostar-me de novo, cerrar os
olhos, pensar num encontro que tive durante o dia, recordar uma frase,
um rosto, a mão que me apertou os dedos, mentiras sussurradas
inutilmente.
O
relógio lá em baixo torna a bater. Conto as pancadas e engano-me. Duas
ou três? Daqui a uma hora certificar-me-ei. Uma hora imóvel, os
cotovelos pregados nos joelhos, o queixo nas mãos os dedos sentindo a
dureza dos ossos da cara. O que há de sensível nesta carcaça trêmula
concentrou-se nos dedos, e os dedos apalpam ossos de caveira.
Um,
dois, um, dois. Evidentemente me equivoco, não ouço o tiquetaquear do
pêndulo: o relógio afastou-se, gastará uma eternidade para me dizer se
foram duas ou três as pancadas que me penetraram a carne e rebentaram
ossos.
Que
está aqui, a martelar no escuro, sim ou não, sim ou não, roendo-me,
roendo-me? Será um rato faminto que roeu a porta, se chegou a mim e
continuou a roer interminavelmente? Não. Se fosse um rato, eu me
levantaria, iria enxotá-lo. Usaria as pernas, que se tornaram de chumbo,
atravessaria a zona luminosa, acenderia um cigarro.
Houve
agora uma pausa nesta agonia, todos os rumores se dissiparam, a vidraça
escureceu, o soalho fugiu-me dos pés – e senti-me cair devagar na treva
absoluta. Subitamente um foguete rasga a treva e um arrepio sacode-me.
Na queda imensa deixei a cama, alcancei a mesa, vim fumar.
Sim
ou não? A pergunta corta a noite longa. Parece que a cidade se encheu
de igrejas, e em todas as igrejas há sinos tocando, lúgubres: “Sim ou
não? Sim ou não?” Porque é que estes sinos tocam fora de hora,
adiantadamente?
A
pessoa invisível que me persegue não se contenta com a interrogação
multiplicada: aperta-me o pescoço. Tenho um nó na garganta, unhas me
ferem, uma horrível gravata me estrangula.
Porque estão rindo? Hem? Porque estão rindo aqui no meu quarto? An, an! An, an! Não há motivo. An, an! An,
an! Um sujeito acordou no meio da noite, não reatou o sono, veio
sentar-se à mesa e fumar. Apenas. Inteiramente calmo, os cotovelos
pregados na madeira, o queixo apoiado nas munhecas, o cigarro preso nos
dentes, os dedos quase parados percorrendo as excrescências de uma
caveira. Toda a carne fugiu, toda a carne apodreceu e foi comida pelos
vermes. Um feixe de ossos, escorado à mesa, fuma. Um esqueleto veio da
cama até aqui, sacolejando-se, rangendo.
Sim
ou não? Lá está o diabo do relógio a tiquetaquear, a matracar: “Sim ou
não”. Desejaria que me deixassem em paz, não me viessem fazer perguntas a
esta hora. Se pudesse baixar a cabeça, descansaria talvez, dormiria
junto à pilha de livros, despertaria quando o sol entrasse pela janela.
Um,
dois, um, dois. Que me dizia ontem à tarde aquele homem risonho, perto
de uma vitrina? Tão amável! Penso que discordei dele e achei tudo ruim
na vida. O homem amável sorriu para não me contrariar. Provavelmente
está dormindo.
Terá parado, o maldito relógio? Terá batido enquanto me ausentei, consumi séculos da cama para aqui?
Um
silêncio grande envolve o mundo. Contudo a voz que me aflige continua a
mergulhar-me nos ouvidos, a apertar-me o pescoço. Estremeço. Como é
possível semelhante coisa? Como é possível uma voz apertar o pescoço de
alguém? Rio, tento libertar-me da loucura que me puxa para uma nova
queda, explico a mim mesmo que o que me aperta o pescoço não é uma voz: é
uma gravata. A voz diz apenas: – “Sim ou não?” Hem? Que vou responder?
Há
uma terrível injustiça. Porque dormem os outros homens e eu fico
arriado sobre uma tábua, encolhido, as falanges descarnadas contornando
órbitas vazias? Hem? Os vermes insaciáveis dizem baixinho: – “Sim ou
não?”
A
luz que vinha da casa próxima desapareceu, a vidraça apagou-se, e este
quarto é uma sepultura. Uma sepultura onde pedaços do mundo se ampliam
desesperadamente.
Sim ou não? Como entraram aqui estas palavras? por onde entraram estas palavras?
Enforcaram-me,
decompus-me, os meus ossos caíram sobre a mesa, junto ao cinzeiro, onde
pontas de cigarros se acumulam. Estou só e morto. Quem me chama lá de
fora, quem me quer afastar do túmulo, obrigar-me a andar na rua, tomar o
bonde, entrar no café?
Sim
ou não? Sei lá! Antes de morrer, agitei-me como doido, corri como
doido, enorme ansiedade me consumiu. Agora estou imóvel e tranquilo.
Como posso fumar se estou imóvel e tranquilo? A brasa do cigarro
desloca-se vagarosamente, chega-me à boca, aviva-se, foge, empalidece. É
uma brasa animada, vai e vem, solta no ar, como um fogo-fátuo. Os meus
dedos estão longe dela, frios e sem carne, metidos em órbitas vazias.
Toda a vontade sumiu-se, derreteu-se – e a brasa é um olho zombeteiro.
Vai e vem, parece que me está perguntando qualquer coisa.
Evidentemente
sou um sujeito feliz. Hem? Feliz e imóvel. Se alguém comprimisse ali o
botão do comutador, eu veria no espelho uma cara sossegada, a mesma que
vejo todos os dias, inexpressiva, indiferente, um sorriso idiota pregado
nos beiços.
Amanhã
comportar-me-ei direito, amarrarei uma gravata ao pescoço, percorrerei
as ruas como um bicho doméstico, um cidadão comum, arrastado para aqui,
para acolá, dizendo frases convenientes. Feliz, completamente feliz.
Novos
foguetes rompem a escuridão e acendem novos cigarros. Feliz e imóvel.
Se a noite findasse, erguer-me-ia, caminharia como os outros, entraria
no banheiro, livrar-me-ia das impurezas que me estão coladas nos ossos.
Mas a noite não finda, todos os relógios descansaram – e a terra está
imóvel como eu.
O
silêncio é um burburinho confuso, um sopro monótono. Parece que um
grande vento se derrama gemendo sobre as árvores dos quintais vizinhos.
Um zumbido longo de abelhas. E as abelhas partem os vidros da janela
escura, o vento vem lamber-me os ossos, enrolar-se no meu pescoço como
uma gravata.
Frio.
A tocha quase apagada do cigarro treme; os dedos, que percorrem buracos
de órbitas vazias, tremem. E a tremura reproduz o tique-taque de um
relógio.
Desejaria
conversar, voltar a ser homem, sustentar uma opinião qualquer,
defender-me de inimigos invisíveis. As ideias amorteceram como a brasa
do cigarro. O frio sacode-me os ossos. E os ossos chocalham a pergunta
invariável: – Sim ou não? Sim ou não? Sim ou não?
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