sexta-feira, 24 de maio de 2013

Recorte do recorte de um livro do Milan Kundera, mas que me bateu muito próximo do lugar onde estamos trabalhando o Graciliano. Dêem uma lida e vejam o que acham. Eu gosto bastante, e me parece que o sr. Engelbert tem tudo a ver com o nosso protagonista, e portanto a reflexão que surge dele pode nos servir.




A cortina rasgada

Ainda uma visita a Praga depois de 1989. Da biblioteca de um amigo tiro, por acaso, um livro de Jaromir John, romancista tcheco do período entre as duas grandes guerras. O romance foi esquecido há muito tempo; chama-se [em francês] Le monstre à explosion, e o leio pela primeira vez naquele dia. Escrito aproximadamente em 1932, conta uma história que se passa uns dez anos antes, durante os primeiros anos da República tchecoslovaca, proclamada em 1918. O sr. Engelbert, conselheiro florestal no tempo do velho regime da monarquia dos Habsburgo, instala-se em Praga para passar ali sua aposentadoria; mas, chocado com a modernidade agressiva do jovem Estado, vai de decepção em decepção. Situação mais do que conhecida. Uma coisa, no entanto, é inédita: o horror deste mundo moderno, a maldição do sr. Engelbert, não é o poder do dinheiro nem a arrogância dos arrivistas, é o barulho; não o barulho antigo de uma tempestade ou de um martelo, mas o barulho novo dos motores, notadamente dos automóveis e das motocicletas: dos “monstros a combustão”.
            Pobre sr. Engelbert: ele se instala primeiro numa mansão num bairro residencial; ali os automóveis o fazem descobrir pela primeira vez o mal que transformará sua vida numa fuga sem fim. Muda-se para outro bairro, contente porque na sua rua os automóveis são proibidos de entrar. Ignorando que a proibição é apenas temporária, fica exasperado na noite em que ouve os “monstros a combustão” roncarem de novo embaixo da sua janela. Daí em diante só vai para a cama com algodão nos ouvidos, compreendendo que “dormir é o desejo humano mais fundamental, e que a morte causada pela impossibilidade de dormir deve ser a pior das mortes”. Procura o silêncio em hotéis no campo (em vão), na casa de antigos colegas em cidades do interior (em vão), e acaba passando as noites em trens que, com seu barulho doce e arcaico, possibilitam um sono relativamente pacífico em sua vida de homem traumatizado.
            Quando John escreveu esse romance, contava-se provavelmente com um carro para cada cem habitantes de Praga, ou quem sabe para cada mil. Tratava-se precisamente de quando ainda era raro que o fenômeno do barulho (barulho de motores) fosse considerado uma espantosa novidade. Deduzo disso uma regra geral: o alcance existencial de um fenômeno social não é perceptível com maior acuidade no momento de sua expansão, mas sim quando ele se encontra em seus primórdios, incomparavelmente mais fraco do que se tornará depois. Nietzsche assinala que no século XVI a Igreja na Alemanha era a mais corrompida que existia no mundo, e foi por causa disso que a Reforma começou, justamente ali, porque só “os primórdios da corrupção eram sentidos como intoleráveis”. A burocracia na época de Kafka era uma criança inocente em comparação com a de hoje, e foi no entanto Kafka que descobriu sua monstruosidade, que depois de tornou banal e não interessa a mais ninguém. Nos anos 60 do século XX, filósofos brilhantes submeteram a “sociedade de consumo” a uma crítica que se tornou ao longo dos anos tão caricaturalmente ultrapassada pela realidade que nos sentimos incomodados por precisar dela. Pois é necessário lembrar outra regra geral: enquanto a realidade não tem nenhuma vergonha de se repetir, o pensamento, em face da repetição da realidade, acaba sempre se calando.
            Em 1920, o sr. Engelbert ainda estava assustado com o barulho dos “monstros a combustão”; as gerações seguintes o acharam natural; depois de tê-lo horrorizado, adoecido, o barulho pouco a pouco remodelou o homem, por sua onipresença e permanência, acabando por inculcar nele a necessidade de barulho, e com isso toda uma outra relação com a natureza, o repouso, a alegria, a beleza, a música (que se tornou um fundo sonoro ininterrupto, perdendo o caráter de arte) e até mesmo com a palavra (que não ocupa mais como outrora um lugar privilegiado no mundo dos sons). Na história da existência, isso foi uma mudança tão profunda, tão duradoura que nenhuma guerra, nenhuma revolução jamais chegou a produzir coisa semelhante; uma mudança cujo começo Jaromir John modestamente assinalou e descreveu.
            Digo modestamente porque John era um desses romancistas a que chamamos de menores; no entanto, grande ou pequeno, era um romancista verdadeiro: ele não recopiava as verdades bordadas sobre a cortina rasgada da pré-interpretação; como Cervantes, ele teve a coragem de rasgar a cortina. Façamos o sr. Engelbert sair do romance de John! Pois, como a maioria de seus semelhantes, o sr. Engelbert está habituado a julgar a vida a partir daquilo que se pode ler na cortina suspensa sobre o mundo; sabe que o fenômeno do barulho, por mais desagradável que seja para ele, não é digno de interesse. Em contrapartida, a liberdade, a independência, a democracia, ou, vendo do ângulo oposto, o capitalismo, a exploração, a desigualdade, sim, cem vezes sim, essas são noções graves, capazes de dar sentido a um destino, de tornar nobre uma infelicidade! Também na autobiografia, que o vejo escrevendo com algodão nos ouvidos, ele dá uma grande importância à independência recuperada por sua pátria e ataca o egoísmo dos arrivistas; quanto aos “monstros a combustão”, relega-os a um pé de página, simples menção de um aborrecimento insignificante que, no fim das contas, se torna risível.

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