quarta-feira, 23 de outubro de 2013

pensando alto (3)



19/10

“Um silêncio grande envolve o mundo. Contudo a voz que me aflige continua a mergulhar-me nos ouvidos, a apertar-me o pescoço. Estremeço. Como é possível semelhante coisa? Como é possível uma voz apertar o pescoço de alguém? Rio, tento libertar-me da loucura que me puxa para uma nova queda, explico a mim mesmo que o que me aperta o pescoço não é uma voz: é uma gravata. A voz diz apenas: – “Sim ou não?” Hem? Que vou responder?” §23

Não é uma voz, é uma gravata. Antes era: não é uma voz, é uma mão poderosa, uma garra. E uma voz. A voz diz apenas. Sim. Não é uma voz que está apertando seu pescoço. O que aperta seu pescoço é uma gravata. A voz diz apenas sim ou não. São as duas coisas. A voz e a gravata. Sim ou não a gravata. Sim ou não levantar-se. Sim ou não, deverei levantar-me. Deverei levantar-me colocar uma gravata, sair, andar como um vivente qualquer? Sim ou não?

O quarto da insônia, digo, o que se opõe ao quarto da insônia é a vida. Mas trata-se de uma vida menos tumular que aquela do quarto? O que significa afastar-se do túmulo? [“Este quarto é uma sepultura. Uma sepultura onde pedaços do mundo se ampliam desesperadamente.” O problema de pensar numa caracterização cadavérica deles, ou melhor, os problemas: talvez remeta muito a algo romântico, especialmente Laura, que já é branca pra caralho (se bem que Reinoso é negro, então ficamos quites); deixar a possibilidade de se encarar a cena como metáfora pra morte, deixar margem pruma ideia de pura alegoria (tipo Lost). Quando se diz, quando GR diz, estou só e morto, é e não é uma metáfora (sou eu quem diz, provavelmente forçando a barra). Pois parece que existe qualquer coisa na experiência que ele ora vive que se aproxima ou mesmo se assemelha demasiadamente com o que se suporia ser a experiência da morte. Ou seja, trata-se, de certo modo, de uma morte. Sem falar do sono, sono de morte. Não deixa de ser hiperbólico, pois de fato (de fato?) ele não está morto (lá vou eu fazendo o que eu não queria fazer), mas diz que está. É relevante ele dizer que está morto sem estar morto. Decomposição, esqueleto, fogo fátuo, vermes, sepultura, túmulo. E, porém, é justamente num momento em que se encontra sozinho consigo mesmo, num momento em que a experiência se estende indefinidamente, ao contrário da dureza que vive no cotidiano - andar pela rua, conversar, tomar o bonde, engravatar-se (frase incompleta). Não quero dizer com isso que a insônia por não ser dura como o cotidiano é, em oposição, uma maravilha. Fala sério. Oposições: a primeira é uma experiência de sem-limite, dormir é um fim, dormir põe fim a uma cena, a cena de um dia, ou, se preferir, é um intervalo entre uma cena e outra, é um princípio organizador. Segunda, Terça. Dormir participa da distinção. Agora é segunda. Durmo, acordo. Agora é terça. Se não se limita, se não se coloca, de um lado, segunda, de outro, terça, entra-se numa experiência de mistura (não exatamente mistura, misturar é pegar uma coisa e outra e colocá-las juntas, nesse caso, os contornos que delimitariam uma coisa discreta à outra se apagam, e há apenas uma coisa, ou seja, ela não se mistura consigo mesma: é apenas uma coisa contínua), de infinitude. Sem limites. A tendência do corpo aí é o desgaste, a exaustão. A morte. Alucinar. Rompe-se com a ordem dos dias. Os dias serão linhas contínuas, um período claro, um período escuro. É tudo uma coisa só, ou melhor, não há “tudo”. Há uma coisa: o tempo contínuo, que somente se distingue através da luminosidade do dia (lembro da epígrafe do Contra o Dia do Pynchon, o Thelonious Monk “Só há noite, do contrário não precisaríamos de luz”. Falando com a Luísa que eu não entendia como isso podia ser pensado pro dia, ela me disse, “Mas no dia há o sol”, o universo é noite. O que me faz debruçar-me ainda mais sobre o Bring on the Night do Police), agora, luz, agora, não. Ainda que o dia seja horrível, que seja terrível conversar com algumas pessoas, que seja um saco sobreviver ("Nós não precisamos sobreviver", lembro, resposta de Ferlinghetti a Gary Snyder, quando Snyder, tido como pacifista, disse que mantinha armas em casa para o caso de aparecerem ursos. Naquele livro de entrevistas com os Beat, da Azougue), ainda assim, é melhor que ficar ali pensando aquelas coisas, ouvindo vozes perguntando-lhe coisas, não dormindo. Mas volta a questão, será que é melhor mesmo?]

Cai-se num outro túmulo afastando-se deste túmulo?

Trata-se em certa medida de algo trágico. Me explico. Ou desejamos o terrível do andar pelas ruas como um vivente qualquer, ou o terrível de se estar só e morto em sua cama, sem dormir, sentindo-se impelido para fora, porque a experiência de infinitude, ou indistinção (relativa a tempo, talvez principalmente) é insuportável, o mal do cotidiano é suportável. Não sei vocês, mas pra mim aí pesou o verbo ser. Talvez a seguinte analogia: pensar para o cotidiano as funções fisiológicas "em ordem", a insônia uma doença que sinaliza para o corpo "você está vivo e não está nada bem". Este cara que se frustra com seu dia não tem lugar, não pertence nem à sua casa nem à rua. Ou melhor, não pertence como desejaria.

Mas a ideia de que não há saída. Saída? Onde se está, de que se pode assim sair? Querer assim sair?

Lembro do Despovoador. E de Carpet Crawlers.

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