quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A festa






































Francis Bacon. Study for portrait of Isabel Rawsthorne 1964.

A festa é um capítulo, você sabe. Você sabe que existe qualquer coisa, porque não se pode dar conta de tudo. E aí você sente que existe alguma coisa. Quando arrancam de você alguma parte. Quando te cortam você sente que existe alguma coisa, antes, mesmo o teu corpo era subtraído de você, agora não, agora você sente que existe alguma coisa, agora você se vê sangrando e se sente menos criança, menos protegido, mais sagaz. Você se vê sangrando e se vê capaz de sangrar, que não é uma parada que talvez quem sabe mas que sim, pelo menos alguma coisa não te foi subtraída, o seu corpo ainda é capaz de alguma coisa, de transgredir a si próprio, porque ninguém precisa do seu corpo sangrando dando problema, precisam de você pelo menos pra burro de carga, mas ninguém gosta de um burro de carga sangrando, e quando você sangra você é mais inteligente, você manda uma galera grande à merda, quando você sangra, ninguém precisa de um cadáver, um cadáver é irritante, só dá problema, é inacreditável como até mesmo se livrar de um cadáver virou um negócio, não hoje, claro, mas virou, o pessoal não respeita nada, calma, me perdi, é, enfim, funerária, essas coisas, o pessoal quer ganhar um trocado em cima de qualquer porra, mas se você sangra alguém chega e fala, pera aí cara você tá sangrando, e você fala, é eu sei mas ok, e o cara responde, não, você tá sangrando, você tem que ir ao médico, e você pensa em plano de saúde, e olha e vê que só tá sangrando e diz, ok, eu só tô sangrando, e você sente que existe alguma coisa, quando você não vai ao médico, você sente que existe alguma coisa, quando o cara fica meio bolado, quando o sangue que sai de você incomoda mais ele do que você, e você vai trabalhar, mas faz outro corte, não grande, você não gosta de sentir dor, você não é maluco, mas você gosta do efeito que o sangue sangrando provoca no ônibus, aqueles olhares ligeiramente perplexos mas silenciosos por excelência, tem uma mordaça quase insuperável em cada um, e quando você chega no trabalho, e o pessoal te olha, e te fala, e os primeiros você ouve e responde, e os segundos você ergue a mão, abanando pra baixo o ar que eles começaram a bafejar na sua direção, com uma expressão agradável no rosto, e diz eu sei eu sei pode deixar não esquenta, e eles se viram, os olhares demoram mais pra se virar que o corpo, não sabem exatamente o que pensar, senão que você tá ficando maluco, ok, os cortes fecham, aí você abre outros, e você para de arregaçar as mangas, você arregaçava pra não sangrar a roupa, agora você deixa manchar e ok, e você sente que existe alguma coisa, e você sente que é por aí, quer dizer, claro que não, mas você sente que pode ser por aí, e você continua, e o pessoal tenta levar numa boa, fica meio assustado e tal, mas tenta levar numa boa, tem aquela cara de você tá doido coitado de você quando vai te pedir alguma coisa, eles têm que te pedir porque dependem de você pruma coisa ou outra, e os que dependiam pruma coisa à toa, tipo passar um café porque gostam de como você prepara o café, o cara ou a moça chega e diz e aquele..., e para olha pras suas mangas vermelhas e empapadas a sua cara pálida, e você fica esperando a frase se concluir, e como esse cara ou essa moça te costuma pedir café você completa o café você pergunta, ela ou ele diz não que isso, e você diz eu faço, ela ou ele não que isso imagina eu é eu não, e você diz beleza então vou fazer pra mim aí você querendo você bebe e você não querendo você não bebe, porra nego é chato pra caralho fica de nhem nhem nhem me olhando como se eu estivesse por um fio, aí claro, arruma motivo pra reclamar, pra você parar com essa merda de sangue, porque você tá manchando tudo no trabalho, as suas pegadas vermelhas no carpete que é cáqui, o encosto da sua cadeira móvel que é cáqui, eventuais esbarrões nos colegas e apertos de mãos na pele deles que é cáqui, aí você começa a usar uma segunda pele de plástico e ok, quer dizer eles foram inteligentes, não conseguiram te convencer pelo argumento do cuide de você e foram pelo ok você quer se foder mas tá fodendo a gente também, e você mandou o pera aí vamos ver isso, e resolveu, e você sente que existe alguma coisa, quer dizer, você já houve um momento em que você sentia mais isso, agora você sente menos, aliás agora você sente menos tudo, porque você já sacou que isso não tá mais incomodando tanto eles, talvez por isso e é verdade talvez não por isso também, isso também não te anima mais tanto, você deve ter virado o cara que se corta e ok, sacou, nego já entendeu, essa parada que você criou foi terrível por um tempo, mas quando eles sacaram sei lá, que tudo bem, eles entraram na de então tudo bem mesmo, e o sangue que te cobre todo dia é tipo uma tatuagem, uma tatuagem feia que você fez quando tava bêbado, sei lá, uma piroca dentada gargarejando porra, e aquilo de repente é nada, e todo o seu esforço de repente é nada, e de repente você sente que perdeu algum sangue.

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