sábado, 16 de novembro de 2013

Paulo, de Graciliano Ramos

Foto: Clayton Leite

Pedaços de algodão e gaze amarelos de pus enchem o balde. Abriram todas as vidraças. E no calor da sala mergulho num banho de suor. Já me vestiram diversos camisões brancos, que em poucos minutos se ensoparam. Não posso afastar os panos molhados e ardentes.

As crianças estiveram a correr no chão lavado a petróleo.

– Retirem essas crianças.

Inútil trazê-las para aqui, mostrar-lhes o corpo que se desmancha numa cama estreita de hospital. Não as distingui bem na garoa que invade a sala: são criaturas estranhas, a recordação das suas fisionomias apagadas fatiga-me.

– Retirem essas crianças barulhentas.

As paredes amarelas cobrem-se de pus, o teto cobre-se de pus. A minha carne, que apodrece, suja a gaze e o algodão, espalha-se no teto e nas paredes.

A alguns passos, uma figura de mulher se evapora. Aproxima-se, está quase visível, tem uma cara amiga, uma vida que esteve presa à minha. Mas essa criatura, dificilmente organizada, pesa demais dentro de mim, necessito esforço enorme para conservar unidas as suas partes que se querem desagregar.

As minhas pálpebras cerram-se, a mulher esmorece, transforma-se numa sombra pálida. Se me fosse possível falar, pedir-lhe-ia que me deixasse.

Os médicos estiveram aqui há pouco, fizeram o curativo. Enquanto amarravam a atadura, os enfermeiros me levantavam e eu me sentia leve, parecia-me que ia voar, flutuar como balão, esgueirando-me por uma janela, fugir do cheiro de petróleo e do calor, ganhar o espaço, fazer companhia aos urubus. As palmas dos coqueiros ficariam longe, na praia branca, invisíveis como a mulher que desapareceu na sala neblinosa. Os meus olhos não podem varar esta neblina densa.

Creio que dormi horas. O balde sumiu-se. Muitas pessoas falam, há um burburinho interminável na escuridão. Seria bom que me deixassem em paz. A conversa comprida rola na sala enorme; a sala é uma praça cheia de movimento e rumor.

A imobilidade atormenta-me, desejo gritar, mas apenas consigo gemer baixinho. Se pudesse, diria qualquer coisa à figura alvacenta, que tem agora as feições de minha mulher. Um assunto me preocupa, mas certamente ela não me entenderia se eu fosse capaz de expressar-me. Contudo necessito pedir-lhe que mande chamar o médico. A voz sai-me arrastada, provavelmente digo incongruências. Minha mulher espanta-se, uma grande aflição marcada nos beiços lívidos e na ruga da testa.

Aborreço-me, exijo que me levem para a enfermaria dos indigentes. Estaria lá melhor, talvez lá me compreendessem. Horríveis estas paredes. Sinto-me abandonado, lamento-me, injurio a criatura solícita que se chega à cama. Por que me olha com olhos de mal-assombrado? Não percebeu o que eu disse? Bom que me mandassem para a enfermaria dos indigentes.

A ferida tortura-me, uma ferida que muda de lugar e está em todo o lado direito. Procuro convencer minha mulher de que o lado direito se inutilizou e é conveniente suprimi-lo.

A enfermaria dos indigentes.

Que fim teria levado o médico? EIe me compreenderia, não me olharia com espanto e ruga na testa.

A minha banda direita está perdida, não há meio de salvá-la. As pastas de algodão ficam amarelas, sinto que me decomponho, que uma perna, um braço, metade da cabeça, já não me pertencem, querem largar-me. Por que não me levam outra vez para a mesa de operações? Abrir-me-iam pelo meio, dividir-me-iam em dois. Ficaria aqui a parte esquerda, a direita iria para o mármore do necrotério. Cortar-me, libertar-me deste miserável que se agarrou a mim e tenta corromper-me.

A neblina se dissipa, as paredes se aproximam, estão visíveis as fôlhas dos coqueiros e o telhado da penitenciária, o avental da enfermeira aparece e desaparece.

A ruga da testa de minha mulher desfez-se. Provavelmente, ela supôs que o delírio tinha terminado. Absurdo imaginar um indivíduo preso a mim, um indivíduo que, na mesa de operações, se afastaria para sempre. Arrependo-me de ter revelado a existência do intruso. Certamente, minha mulher vai afligir-se com a loucura que me persegue.

Fecho os olhos, vexado, como um menino surpreendido a praticar tolice. Finjo dormir: talvez minha mulher julgue que falei em sonho. Contenho a respiração, o suor corre-me na cara e no pescoço.

Lá fora eu era um sujeito aperreado por trabalhos maçadores, andava para cima e para baixo, como uma barata. Nunca estava em casa. Recolhia-me cedo, mas o pensamento corria longe, fazia voltas em torno de pensamentos desagradáveis. Recordações de tipos odiosos, rancor, a ideia de ter sido humilhado, muitos anos antes, por um sujeito que se multiplicava.

O nevoeiro embranquece novamente a ala, as paredes somem-se, o rosto da mulher mexese numa sombra leitosa. Torno a desejar que me levem para a mesa de operações, cortem as amarras que me ligam ao intruso.

Evidentemente, uma pessoa achacada tomou conta de mim. Esta criatura surgiu há dois meses, todos os dias me xinga e ameaça, especialmente de noite ou quando estou só. Zango-me, discuto com ela, penso em João Teodósio espírita e maluco. João Teodósio tem olhos medonhos, parece olhar para dentro e fala nos bondes com passageiros invisíveis. O homem que se apoderou do meu lado direito não tem cara e ordinariamente é silencioso. Mas incomoda-me. Defendo-me, grito palavrões e o sem-vergonha escuta-me com um sorriso falso, um sorriso impossível, porque ele não tem boca.

Tentei ler um jornal. As linhas misturavam-se, indecifráveis. Receei endoidecer, mastiguei uns nomes que minha mulher não entendeu, queixei-me do médico e de Paulo. Como ela não conhecia Paulo, impacientei-me, julguei-a estúpida, esforcei-me por me virar para o outro lado, o que não consegui.

Certamente, as criaturas que me cercam embruteceram, são como as crianças que estiveram correndo no chão lavado a petróleo. A enfermeira tem caprichos esquisitos, o médico não perceberá que é necessário operar-me de novo, minha mulher franze a testa e arregala os olhos ouvindo as coisas mais simples.

Comecei um discurso, uma espécie de conferência, para explicar quem é Paulo, mas atrapalhei-me, cansei e desprezei aquelas inteligências tacanhas. Tempo perdido. Sentia-me superior aos outros, apesar de não ser possível exprimir-me.

Realmente, Paulo é inexplicável: falta-lhe o rosto e o seu corpo - é esta carne que se imobiliza e apodrece, colada à cama do hospital. Entretanto, sorri. Um sorriso medonho, sem dentes, sorriso amarelo que escorre pelas paredes, sorriso nauseabundo que se derrama no chão lavado a petróleo.

Escurece. A camisa molhada já não me escalda a pele: esfriou, gelou. E os meus dentes batem castanholas. Morrem os cochichos que zumbiam na sala. Alguém me pega um braço, dedos procuram a artéria.

A escuridão se atenua, o burburinho confuso reaparece, a camisa torna a queimar-me a pele, os dentes calam-se. Incomoda-me a pressão que me fazem no pulso, tento libertar o braço. A mão desconhecida tateia, procurando a artéria. Há um zunzum na sala, vozes confundem-se como num cortiço de abelhas. Sinto ferroadas terríveis na ferida.

Os dedos seguram-me, tenho a impressão de que Paulo me agarra. Um rumor enfadonho, provavelmente reprodução de maçadas antigas, berros de patrões, ordens, exigências, choradeiras, gemidos, pragas, transformam-se num sussurro de abelhas que Paulo me sopra ao ouvido. Agito a cabeça para afugentar o som importuno. Se pudesse, cobriria as orelhas com as palmas das mãos.

Afinal, ignoro quem é Paulo e reconheço que minha mulher tem razão quando me oferece pedaços de realidade: visitas de amigos, colheres de remédio, a comida intragável.

Devo aceitar isso. Curar-me-ei, percorrerei as ruas como os outros. A princípio, arrastar-me-ei pelos corredores do hospital, com muletas, parando às portas das enfermarias dos indigentes; depois sairei, a perna ainda encolhida, andarei escorado a uma bengala, habituar-me-ei a subir nos bondes, verei João Teodósio fazendo sinais misteriosos a um lugar vazio.

Preciso resistir às ideias estranhas que me assaltam. Bebo o remédio, peço a injeção, espero ansioso que o médico venha mudar a gaze e o algodão molhado de pus.

Entrarei nos cafés, conversarei sobre política. Uma, duas vezes por semana, irei com minha mulher ao cinema. De volta, comentaremos a fita, papaguearemos um minuto com os vizinhos na calçada. Não nos deteremos diante da porta de João Teodósio. Apressaremos o passo, fugiremos daqueles olhos medonhos de quem vê almas.

Em que estará pensando João Teodósio? Minha mulher interroga-me admirada, repete palavras incoerentes que dirigi a João Teodósio.

Sem querer, entro a palestrar com ele, de volta do cinema. Apoio-me à bengala e suspendo um pouco a perna avariada.

A ferida começa a doer-me horrivelmente. Não estou de pé, cavaqueando com um vizinho amalucado, estou de costas num colchão duro. Veio-me um acesso de tosse e o tubo de borracha que me atravessa a barriga parece um punhal. Gemo, o suor corre-me entre as costelas magras como as de um cachorro esfomeado. Tenho sede. A enfermeira chega-me aos beiços gretados um cálice de água. Bebo, ponho-me a soluçar. Os soluços sacodem-me, rasgam-me, enterram-me o punhal nas entranhas.

Estou sendo assassinado. Em redor, tudo se transforma. O avental da enfermeira ficou transparente como vidro. Minha mulher abandonou-me. Acho-me numa floresta, caído, as costas ferindo-se no chão e um assassino furando-me lentamente a barriga. As paredes recuam, fundem-se com o céu, as folhas dos coqueiros tremem e passa entre elas o cochicho que zumbe na sala.

Paulo está curvado por cima de mim, remexe com um punhal a ferida. Estertor de moribundo na floresta, perto de um pântano. Há uma nata de petróleo na água estagnada, coaxam rãs na sala.

Não conheço Paulo. Tento explicar-lhe que não o conheço, que ele não tem motivo para matar-me. Nunca lhe fiz mal, passei a vida ocupado em trabalhos difíceis, caindo, levantando-me, cansado. Peço-lhe que me deixe, balbucio súplicas nojentas. Não lhe quero mal, não o conheço.

Mentira. Sempre vivemos juntos. Desejo que me operem e me livrem dele.

Sairei pelas ruas, leve e o meu coração baterá como o coração das crianças. Paulo ficará na mesa de operações, continuará a decompor-se no mármore do necrotério.

O que estou dizendo a gemer, a espojar-me, é falsidade. Paulo compreende-me. Curva-se, olha-me sem olhos, espalha em roda um sorriso repugnante e viscoso, que treme no ar.

Uma figura branca desmaia. O burburinho finda. Alguém me segura novamente o braço, procurando a artéria. O punhal revolve a chaga que me mata.

Nenhum comentário:

Postar um comentário