quinta-feira, 20 de junho de 2013

sobre ensaios (5), Reinoso

















Krapp. Um silêncio envolve o mundo. Um silêncio grande. Quem quebrará o silêncio? Ninguém quebra o silêncio. Nós apenas o cobrimos com palavras. Com ruídos e palavras. Roubo do Mutarelli pra dizer, sempre o silêncio, subjacente, sem que seja apenas coberto, às vezes as palavras, palavras de silêncio, falar nem sempre é desistir do silêncio, às vezes é persegui-lo. Monstro, todos somos monstros. Certa incontinência os libera. Assim como certa constipação os segura. Ou, ao modo do narrador de Primeiro Amor, às vezes seguramos as nádegas e como os malucos que batiam tambor pros caras remarem, entoamos bravos: Um! Dois! Um! Dois!
sai daqui merda.

Krapp desliga o aparelho, levanta a cabeça, olhos fitos no vazio.

Não se trata apenas de amor. Não? Não. Reinoso deixou claro. Com o perdão do trocadilho. O breu da cena. A questão pode residir no apenas. Mas aqui não surgia. Aqui era luta corporal. Não via algo erótico. Mas um suplício. Entre si e si. Entre explodir-se de si algo e não explodir. Insone. Insone e mau. Insone e mau e monstro. O diário. Sim, era o Krapp. O perder-se na fossa infinita, numa rachadura oceânica, entendeu?, escura, não bastasse toda a sua horripilância, em que somente a ideia de imaginar a sua existência já quase me extermina de pavor, pensar-se lá, entrando, sem ar, entrando, sem mover-se bem, entrando, nadando, entrando, afogando-se, entrando, morrendo, escuro e bichos desconhecidos, horrendos, entrando sempre, de algum modo adiante, até que de nenhum modo adiante, dito de nenhum modo adiante.


Sem with me.

(por falar em dirt, You could have it all, my empire of dirt. Trent Reznor e Johnny Cash, que fez ela dele e me faz chorar)

As coisas em itálico são de A Última Gravação de Krapp, do Beckett.

Passa da meia noite. Jamais ouvi tamanho silêncio. A Terra podia ser desabitada.

- no alto do lago, mais o barco, nadei perto da margem, depois levei o barco até o largo e deixei-o andar sem governo. Ela estava deitada sobre as tábuas do fundo, as mãos debaixo da cabeça e os olhos fechados. Sol fulgurante, uma bisca de brisa, a água um tudo um nada marulhante como eu gosto dela. Notei-lhe um arranhão nas coxas e perguntei-lhe como o tinha feito “A colher groselhas verdes”, respondeu-me ela. Disse-lhe ainda que tudo aquilo me parecia sem esperança e não valia a pena continuar e ela fez que sim sem abrir os olhos. (pausa) Pedi-lhe que olhasse para mim e após alguns instantes – (pausa) – após alguns instantes ela olhou, os olhos porém como fendas por causa do sol. Inclinei-me sobre ela para os por à sombra e eles abriram-se (Pausa). Deixaram-me entrar (Pausa) Derivávamos por entre os caniços e o barco encalhou. Como eles se dobravam, suspirando diante da proa! (Pausa). Vim-me sobre ela, o rosto entre os seus seios e a mão por cima dela. Ali ficamos deitados, sem nos mexermos. Mas debaixo de nós, tudo estremecia, e nos fazia estremecer, docemente, de alto a baixo, e de lá para cá.

Quase isso. Sem a lembrança dela? A dor por outra via, provavelmente.

O sozinho já esteve alguma vez com alguém. Um eremita. Heráclito já esteve com alguém. A peça do Trepliov, a alma do mundo sou eu. O que resta. Tudo está morto. Menos eu. Grande merda. Contra a ideia do Trepliov, não é tão bonito, não é um apanhado de almas das coisas, não é a alma de Alexandre, de Shakespeare, da reles sanguessuga. É menos, é sugado. É mais o "uma vez a cada cem anos, abro a boca para falar e minha voz ressoa neste deserto tristonho, mas ninguém escuta...E vocês, ó pálidas luzes dos fogos-fátuos, não me escutam...De madrugada, o pântano pútrido as traz ao mundo e vocês, pálidas luzes, vagueiam até a aurora , mas sem pensamentos, sem vontade, sem os tremores da vida". “All is lost”, it’s all I’ve ever written.

Trinta e nove anos hoje, sólido como uma ponte, à parte meu velho ponto fraco, e quanto a intelectualmente, tenho agora razões para me suspeitar no... (hesita) no píncaro da vaga – ou pouco falta, na verdade. Celebrada a solene ocasião, como todos esses anos, tranquilissimamente, na Taverne. Nem vivalma. Para ali me deixei estar diante do fogo, os olhos fechados, a separar o trigo do joio cá da minha vida. Rabisquei algumas notas nas costas de um sobrescrito. Feliz por estar de volta à minha mansarda, aos meus trastes. [...] A nova iluminação mesmo por cima da minha mesa constitui um grande melhoramento. Com toda esta obscuridade à minha volta sinto-me menos só (pausa). Em certo sentido. (Pausa) Adoro levantar-me para lhe dar uma volta, depois voltar aqui a... (hesita) mim (pausa). Krapp.

Merda. Porcaria. Lixo. Resíduo. Detrito. É por aí.

A insônia. Este pedaço à parte de tudo. Lembro-me que por esses dias também eu me sinto à parte de tudo. Não insone. Malgrado falemos todo o tempo disso, não se trata de um mal que me acomete, o sono me toma e ponto. Não avancemos tanto sem centro e objetivo.

Este pedaço à parte de tudo. Porém regendo seu próprio universo. Até que é subjugado por ele próprio. Um silêncio grande envolve o mundo. Grava. Ouve. Rebobina. Diário de insônia. Ouvi alguma coisa, era o vizinho, e agora, o sono, cadê?

Das melhores passagens do Graciliano no Insônia: Este quarto é uma sepultura. Uma sepultura onde pedaços do mundo se ampliam desesperadamente.

Isto é a cena do Reinoso. Estas partes ampliadas, inflamadas, purulentas, doloríferas, e uma eventual explosão, a mudança da luz, da luminária, pra ruidosa branca, de baixo, abaixo da mesa, vinha de suas pernas, e aquele som agudinho, um inseto gemendo.

Pedaços do mundo se ampliam desesperadamente. Até que algo o puxa. Algo o alavanca. Algo o comanda separar-se de si, e sentindo o Medo de Thompson e seu advogado samoano, ele se move contra. Sem olhos, empunhando um foco. Hostil e contra. Que de preferência extermine algo. Ou cace algo. Um “quem está aí?” (seria um ladrão?). Não só, não basta. Quem está aí parte da preservação de si. O cara com uma arma, uma faca, as mãos tremendo. Esse medo é: não quero morrer, talvez não só. Aqui a sepultura em que pedaços do mundo se ampliam desesperadamente. Não se produz enunciado. Apenas o gesto. Levanta-se, a camisa no rosto, esse monstro cego caça.

A imagem do Tchekhov no Sorin, dormi e senti que meu cérebro se colou no meu crânio. 

Uma música de axé. Um vulcão em erupção é uma imagem sublime, diz Kant ou Schiller, não lembro mais quem, porque é um fenômeno catastrófico da natureza, mas desde que conserve-se uma lonjura dele, ficar fora do alcance do magma, da lava, ouvir isso, um axé nefasto, quase é sublime: quase, pois não estou longe o suficiente, eu o ouço, nunca poderia estar longe de algo que ouço, ou melhor, nunca poderia estar longe do som que ouço, mas considero sublime ainda assim. Mentira, pois pode-se estar longe do que se vê, a imagem está enterrada no olho, mas não mata o corpo, não o toca. É tão terrível. Se não fosse tão maravilhoso, eu quereria morrer. Esse clímax foi genial. Situação limite do monstro desesperado caçando e o axé pé-rapado visgando o tutano.

Luísa me corrigiu. Talvez seja sim sublime, ou melhor, talvez exista o distanciamento que eu digo que não existe. A cena pressupõe esse distanciamento. A cena como até aqui a concebemos. O vulcão se explode e estamos longe.

Chega.

2 comentários:

  1. Inevitável "palavras, palavras, palavras".

    Estamos num lugar protegido do vulcão, quase esperamos por ele, não é como se estivéssemos a andar na rua tranquilamente e o axé saísse numa emboscada da mala de um carro e se assentasse sobre nós, e nós nem podemos dar queixa na delegacia, não reconheceram ainda esse tipo de assalto como crime hediondo.

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